Palavras Cruzadas *
Palmira tirou a ponta roída da esferográfica da boca e deu uma dentada na torrada sem desviar os olhos do pequeno livro que tinha à sua frente.
– Bruna, clã com sete letras?
– Sou a Sónia. Família.
Levantou o olhar por cima dos óculos de leitura que se equilibravam na ponta do nariz e, durante um par de segundos, fixou-o na rapariga.
Voltou a dar atenção à escrita.
– Vocês são todas iguais, vestidas da mesma maneira – resmungou, enquanto escrevia no livrinho pousado sobre a mesa da casa de jantar, primorosamente adornada com uma jarra cheia de rosas do quintal sobre um naperon branco-pérola, com a bandeja do lanche à sua direita.
– Avó, sou sempre eu que estou aqui e nem sei quem é a Bruna.
– A tua mãe vem a que horas? Pedi-lhe para me fazer um favor.
– Deve vir pelo fim da tarde… Mas a avó precisa que eu vá buscar alguma coisa?
Palmira empurrou a parte central dos óculos com o indicador esquerdo, fazendo-os subir até meio do nariz e escusou-se a responder.
– Gruta com cinco letras?
– Gruta tem cinco letras.
– Com sete, com sete.
– Ah! Caverna.
Palmira escreveu cada letra no seu quadradinho e riscou a descrição da palavra descoberta.
– Sabes a que horas chega a tua mãe, Paula?
– Sou a Sónia, avó. A mãe deve chegar ao fim da tarde. Já lhe perguntei se precisa que lhe vá buscar alguma coisa.
– Vocês são todas iguais, com esses cabelos pintados e esticados. Ensaio clínico com onze letras e que acaba com ‘a’?
– Experiência?
– Deixa ver… sim, é isso mesmo.
– A avó tem de lanchar agora para tomar os medicamentos. O chá e as torradas daqui a pouco estão frios.
Palmira olhou de soslaio para a rapariga e voltou a concentrar-se, batucando com a ponta mordida da esferográfica no queixo.
– Aquele que perdoa facilmente, com dez letras, começa com ‘i’ e acaba com ‘te’?
– Indulgente.
Palmira preencheu os espaços com as letras, soletrando a palavra pausadamente. Com a testa franzida, olhou para a rapariga por cima dos óculos.
– Sabes da tua mãe, Raquel?
– Eu sou a Sónia, avó. A mãe ainda demora. Tem mesmo de ser ela a fazer-lhe o tal favor?
Palmira torceu a boca e encolheu os ombros com desdém. Largou a esferográfica em cima do caderno, apenas para bebericar um pouco de chá e voltou a segurá-la com ar pensativo.
– Ana, conflito com nove letras?
– Sónia. Confronto. Avó, tem os comprimidos aí ao lado das torradas. Tome-os com o chá, antes que se esqueça.
– Carla, a tua mãe demora-se?
– Sou a Sónia, avó. Diga lá do que precisa!
– Eu já pedi à tua mãe. Ela é que não se pode esquecer.
– Mas diga lá o que é!
– Preciso que ela me compre outro livro de palavras cruzadas.
– Outro? Então, mas eu trouxe-lhe esse novo ontem! – respondeu a rapariga, com os olhos abertos de espanto.
– Eu sei, mas este que me trouxeste é muito fácil. Não presta. Já viste que eu resolvi esta página sozinha num instante?
* fruto de um desafio semanal do Clube dos Writers