Maria *
Nasci mulher. Nesse mesmo instante, tornei-me Maria. Filha, neta, irmã, sobrinha, futura tia, cunhada, nora e mãe de Marias. Cada uma Maria Qualquer Coisa diferente das restantes, mas todas igualmente Maria. Batizaram-me Maria da Anunciação, homenagem ausente de humildade por parte da minha madrinha, com o mesmo nome. Sendo filha da Maria da Conceição e neta da Maria da Ressurreição, fui apelidada de Sãozinha, filha da São e neta da Dona São, categorias hierárquicas que fui escalando ao longo dos anos, à medida que as anciãs findavam a sua vida terrena.
Enquanto criança, era dona de uma alegria sem limites e oferecia sorrisos rasgados sem pedir nada em troca. O mundo e a vida, que aos meus olhos eram amplos e infinitos, repletos sonhos, começavam, sem eu dar conta disso, a ser polidos pela São, minha mãe, sob os comandos da Dona São, sua mãe. Eram constantes as recomendações para não correr nem sujar o vestido, para não rir nem falar alto na presença de adultos. Fui treinada para inclinar a cabeça para o lado e juntar as palmas das mãos junto ao queixo cada vez que estava na presença do Senhor Padre. As Marias da família alimentavam-se da esperança de eu vir a ser escolhida para encarnar a figura da Virgem Maria numa das procissões da aldeia. Eu fazia-o na perfeição, deixando todas as Marias de carne e osso embevecidas e assaltadas por lágrimas devotas nos cantos dos olhos. Em particular a São, minha mãe, que, com o passar dos anos, foi obrigada a substituir o orgulho pela frustração, à medida que os meus traços infantis se iam esbatendo e com eles as hipóteses de vir a ser escolhida para tão nobre e casto papel.
Os anos voaram e eu, ainda Sãozinha, deixara de ser criança. Os seios faziam volume por dentro do vestido e as ancas rebolavam a cada passada, enaltecendo a cintura que se estreitara e as pernas que se haviam alongado. Já não me eram permitidas brincadeiras fora de casa nem permanecer na companhia de um homem na ausência de uma Maria mais velha. Até o José, o Alberto e o Joaquim, antes companheiros de corridas e jogos, eram agora rapazes com sinais de puberdade instalada, potenciais vítimas inocentes das suas próprias hormonas, tal como os pais e os tios. Os deles e os meus. E eu, culpada das minhas novas formas, do meu novo cheiro, da minha existência, era castigada por isso. À medida que a minha vida queria florescer, o meu mundo ganhava paredes retas e cantos inóspitos, talhados pela São, mãe castradora, outrora também ela castrada. Estávamos cada vez mais parecidas uma com a outra, diziam-me, num tom que me parecia cada vez mais premonitório do que elogioso, quando tudo o que eu menos queria era uma vida estanque e rígida como a dela. Revoltada, gritava, chorava. Mas quanto mais resistia, mais apertados e altos se tornavam os muros que se erguiam à minha volta.
Estava já casada e gestante do meu primeiro rebento quando se findou a Dona São, dando lugar à coroação da minha mãe e à minha promoção de Sãozinha para São. A vida derrotara-me e espelhava o que sempre repudiei. Tornei-me numa São igual à São, minha mãe. Tudo moldado à esquadria, qual favo de uma enorme colmeia, igual a todos os favos que me rodeavam, justapostos uns com os outros, sem margem para desvios ou moldes de vida diferentes dos demais. Eu servia o José, macho viril escolhido para meu esposo pelo Manuel, meu pai, sob orientação da São, sua esposa, minha mãe. Comida, cama e roupa lavada, nas horas estipuladas e nas horas extras, quando solicitadas. Sem lamentos, sem afetos, sem despeito, sem falhas, sem mais nada. Tinha tudo para ser infeliz, mas até isso era um luxo que as muralhas hexagonais da minha existência não permitiam.
Meses depois nasceu-me a primeira filha, que nesse mesmo instante se tornou Maria. Maria da Conceição, exigiu a Dona São, minha mãe, em sua própria homenagem. Maria da Conceição ficou, pois não era meu direito ter opinião sobre o nome de filha alguma. Cabia-me a tarefa de esculpir-lhe as linhas retas da vida antes que as curvas das ancas se instalassem. Cabia-me a missão de moldar uma Maria de arestas perfeitas. Uma Maria como todas as outras.
*Conto publicado na 9ª edição da Revista "Contos de Samsara"