A Família Gonzaga*
A par do chilrear dos pardais, ondulava um burburinho de lamentações e trabalhos forçados. Passos contundentes, que fustigavam a gravilha, aproximaram-se, contornaram a parede e estacaram na parte lateral da edificação. A torneira calcinada foi forçada a abrir e libertou um jorro de água, cujos soluços ecoaram nas paredes de um balde de plástico.
Paulo abriu os olhos num sobressalto. Tinha sido vencido pelo sono e surpreendido pelo dia. Revirou-se a custo e gatinhou até à porta envidraçada. De cócoras, perscrutou o exterior, escondido atrás das cortinas encardidas e coçadas pelo tempo.
Lá fora, arrastava-se um marasmo tenebroso. Vultos taciturnos e cabisbaixos deambulavam para cá e para lá. O vento roubava as folhas secas das ramagens amontoadas em redor dos contentores atafulhados. O porteiro, coxo e marreco, empurrava um carrinho de mão vazio. Trazia a barriga a querer fugir-lhe por baixo da camisa e um cigarro equilibrista no canto da boca. As chaves do portão vinham penduradas no cinto das calças e sinalizavam, como badalos, a sua localização.
— Não posso sair agora — desabafou em surdina. Ninguém lhe respondeu.
Se fosse visto a abrir a porta pelo lado de dentro, àquela hora, todos saberiam que tinha o costume de ali pernoitar, explicou-se ao jovem Bernardo e à sua mãe, Filomena. A notícia rapidamente se espalharia. Haveria uma denúncia, uma perseguição, uma detenção. Descobririam que entrava no recinto depois de o portão se fechar, trepando pelo canto partido do muro, e que abria a porta envidraçada com uma chave roubada. Alguém trataria de remendar o muro e de devolver a chave à família Gonzaga.
— E vocês, coitaditos, aqui fechados, ficariam para sempre a pensar que eu vos tinha abandonado.
Um esgar de desconforto fê-lo interromper-se. Apoiou-se na prima Alzira, sem pedir licença, e esticou as pernas para aliviar os joelhos.
— Tenho de esperar pelo entardecer e que as ruas fiquem desertas — dirigia-se, desta vez, ao tio Álvaro. — Por sorte, sobrou-me um naco de pão, meio frango assado e meia garrafa de tinto. Sempre dá para me aguentar durante o dia.
O tempo teimava em não passar, alheio ao esforço de Paulo, que tentava enganá-lo com confissões e desabafos: o adultério e o divórcio; as saudades da filha; o desemprego, as dívidas, a casa que se perdeu. Admitiu, emocionado, que encontrara ali, junto deles, o seu amparo e prometeu ser mais cuidadoso. Não voltaria a deixar que a manhã se levantasse antes dele.
Ao início da tarde, assomou-se uma aflição. Pediu-lhes que ficassem num canto, enquanto os amontoava, com as identificações voltadas para a parede. Precisava de privacidade, explicou-lhes. A bexiga queixava-se e era impossível contê-la por mais tempo. Virou-se para o canto oposto, de costas para todos, e aliviou-se. Depois, ajudou-os, um a um, a voltarem aos seus lugares, agradecendo-lhes o obséquio. Quando chegou a vez da avó Palmira, corou e desculpou-se com humildade. A data de nascimento daquela senhora impunha solenidade e respeito.
Finalmente, o céu escurecia e as ruas começaram a ficar despovoadas. Ao longe, soavam as badaladas do relógio da igreja da vila, marcando a hora de encerramento do recinto, e as poucas pessoas que ainda permaneciam começaram a dirigir-se para o portão.
Paulo abriu a porta devagar, confirmando a ausência de vivalma lá fora. Prometeu-lhes que não tardaria a regressar e saiu.
Zeloso, trancou a pequena porta envidraçada e guardou a chave de ferro no bolso das calças. Cruzou os braços em frente do peito e encolheu-se, para se proteger do vento gelado que, tal como ele, contornava a parede de mármore do jazigo da família Gonzaga.
Com passos curtos, mas determinados, avançou pelos intervalos entre as sepulturas, até desaparecer para lá dos ciprestes que ocultavam o canto desabado do muro do cemitério.
*conto integrado na P'ARTE recolhas poéticas #4 "Sympathy for the Grave" - http://hdl.handle.net/10451/