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Espólio

Laura Vasques de Sousa

Luz e Suor (spooktober 2024)

02.11.24

O Spootober 2024, desafio de escrita criativa no âmbito do terror, foi criado e dinamizado pela escritora Rita Santos, com o mote "Encontrar o terror em temas como a beleza, a serenidade e a suavidade". A cada dia de outubro, os participantes tiveram "apenas" de criar um conto, sem limite de palavras, com base numa palavra-tema previamente definida. Foi assim que escrevi (com algumas batotas em dias de menor inspiração) os contos aqui reunidos. 

Da edição Spooktober 2023, nasceu o e-book Fragmentos de Terror, disponível para download gratuito, fruto do espírito irrequieto da diabólica Rita Santos. Podem encontrá-la, seguir o seu trabalho e obter mais informações sobre os restantes contos, autores participantes e edições do Spooktober aqui: https://www.instagram.com/_ritassantos/

 

- Luz e Suor - 

 

Procrastinação

Colocou a faca de serrilha e a jarra no centro da bancada da cozinha. Verteu-lhe água até metade da sua capacidade. Duas ramagens verdes, frondosas, abertas em leque, um jarro, duas rosas brancas, cinco malmequeres. Dois, um, dois, cinco. Podia ser uma data, podia ser o código de um cofre, podia ser uma coisa qualquer. Mas era uma hora marcada. Um arrepio de entusiasmo sacudiu-lhe o pescoço. Imaginou-se vestida de negro, ajoelhada sobre a relva, a compor um arranjo floral como aquele, dentro de uma jarra como aquela, sobre uma pedra mármore retangular como aquela.

O trinco da porta anunciou a sua chegada. Ele avançou, trôpego, com os olhos febris presos ao seu decote. Brindou-a com uma lambidela na boca, com o hálito pestilento a vinho tinto e um afago no relevo da anca. Trazia um sorriso aberto e molhado que não se desfazia enquanto, sem demoras, invadia o território por baixo do vestido com as mãos calejadas. Ela, com os dentes e os olhos cerrados, fingindo que gostava, imaginava agora aquele sorriso cristalizado, servido numa fotografia em tons de sépia, para ser comido aos poucos pelo Sol.

Entre os solavancos, sem ter quem lhe valesse, aproximou os dedos do cabo da faca e indagou o relógio. Com um tiquetaque mudo, os ponteiros disseram-lhe que já eram vinte e uma horas e vinte e oito minutos.

Recolheu os dedos. Suspirou, resignada. Hoje, não. Atrasei-me. Talvez amanhã.

*

*

Sussurro

O peso da cabeça a tombar e o esticão no pescoço mostravam-lhe que o sono vencia, mais uma vez. Cabeceava, sentado na cadeira de baloiço, abraçado aos joelhos. 

As tiras de luar que entravam pelos buraquinhos da persiana incidiam sobre o contorno da almofada. Eliseu fechou os olhos com força, apertou os joelhos, mordeu o lábio. Não queria vê-la, não queria que ela o visse. A malvada parecia sorrir-lhe no lusco-fusco. Gostava de sussurrar enquanto ele dormia com a cabeça pousada sobre ela. Dizia-lhe onde espetar a faquinha de abrir cartas para que as pessoas morressem devagar, mas morressem. Ensinava-lhe que se batesse com o pisa-papéis num determinado sítio da nuca, a pessoa não morria, mas nunca mais se mexia

Preferia dormitar na cadeira, mesmo adivinhando que o pai lhe ralharia pela manhã. Mas nunca ralhava, porque nunca o encontrava ali. Sem saber como, Eliseu despertava, assustado, ainda de madrugada, deitado na sua cama, depois de ouvir os devaneios da almofada.

As pálpebras descaíram devagar, até se fecharem. A cabeça tombou, derrotada, sobre o pijama de flanela azul com ursinhos e estrelinhas, amarelos e sorridentes. A porta rangeu baixinho e os pés descalços, cautelosos, avançaram até à cadeira de baloiço. Os braços cobertos pelo linho cru da camisa de dormir, pegaram suavemente no corpo frágil do pequeno Eliseu e levaram-no até à sua cama. Foi deitado e aconchegado com as cobertas até aos ombros. Os dedos esguios afastaram-lhe a mexa de cabelo negro da testa, onde a boca de lábios finos depositou um beijo terno, para depois se demorar junto ao ouvido, num sussurro, a explicar-lhe que se deixasse os bicos do fogão abertos durante meia hora e depois acendesse um fósforo, a casa toda iria brilhar e voar como um cometa.

— Mãe! Mãe! Tive outro pesadelo!

— Shhhh… Estou aqui, meu amor… Já passou.

*

*

Fim de Transmissão

A corda dança na minha mão. Ri-se de mim. 

Tenho a cara deformada, os olhos secaram, não consigo fechar a boca.

Lá em baixo, os quadradinhos parecem uma manta de retalhos antiga. 

Rodo o corpo para cima. Não vejo nada. 

Rodo o corpo para baixo. Os quadradinhos vão crescendo. Afinal não são todos quadrados, alguns são retângulos, outros têm os ângulos repuxados e torcidos. 

A corda na minha mão continua a dançar, como se fosse uma cobra, rindo-se de mim.

O vento deforma-me a boca e as bochechas. Risca-me a cara com a baba e o ranho que empurra desde as suas origens até às orelhas. Não tenho lágrimas, secaram-me os olhos. 

Será que alguém se vai lembrar de dar comida ao cão? Coitadinho. E quem dará a notícia à minha mãe? Vai abanar a cabeça, dizer-lhes que sabia que isto não ia correr bem, que me avisou e pediu para não vir. 

Deixei a loiça do pequeno almoço por lavar. 

Queria ir à Índia. 

Rodo o corpo para cima. Não vejo nada. O paraquedas não abriu.

Rodo o corpo para baixo. Os quadrados e retângulos já são apenas um. Um prado que nunca mais acaba. Um prado que nunca mais ac

*

*

Anil

— Isso, aperta… agora solta… isso. Viste alguma coisa?

— Acho que sim… não sei… se calhar, fui muito rápido.

— Não, não viste nada! São só seis!

— São sete! Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil, violeta!

— Oh, aperta lá outra vez… agora solta… isso. Vês como eu tenho razão? Fica azul claro, depois azul escuro e depois violeta. O anil não existe.

— Existe, sim! A professora disse, ontem!

— Então, diz-me uma coisa que seja anil.

— Não sei. Nunca vi o anil.

— Pois, nunca viste, porque o anil não existe. Aperta lá outra vez.

— Oh, bolas…

— Aperta!

— Estou a apertar, mas acho que ela já não respira.

— Merda.

— Vou dizer à professora que andas a dizer palavrões!

— Cala-te. Espreita pelo intervalo do arbusto e vê se há mais alguém. 

— Está só aquele miúdo chinês da pré-primária a fazer desenhos na terra com um pauzinho.

— Então, agora trocamos. Tu é que lhe mostras o chupa-chupa para ele vir até aqui e eu é que lhe aperto o pescoço. Vais ver que a pele dele fica azul clara, depois azul escura, depois violeta e que não existe anil nenhum. E acaba-se a tua teimosia, foda-se!

— Outro palavrão! Vou dizer à professora!

*

*

New Kid on the Block

Olá, bom dia. Permite-me que me sente aqui ao seu lado? Vamos lá ver como é que isto corre, não é verdade? Um gajo, aqui, até anda mais ou menos à vontade. Você não sabe, mas eu vivia praticamente acorrentado. Não deixes os sapatos aí! Custa-te muito pendurar o casaco no cabide? Leva o lixo lá para fora. Olha a toalha molhada em cima da cama! Naqueles dias em que não havia nenhum jogo na televisão, eu até lhe arrumava a loiça lavada, mas lá vinha ela: quantas vezes tenho de te dizer que os copos são no lado esquerdo e as canecas no direito? Isto mói a cabeça a um gajo. Só a vozinha dela já me fazia tremeliques no pescoço. Mas pronto, fingia que não era nada. É que, depois, à noite, um gajo quer um beijinho e picar o ponto, não é? Se elas se chateiam muito, amuam e não há nada para ninguém. E olhe, naquele dia, eu até me esforcei. Deixei os sapatos arrumados, pendurei a toalha do banho, arrumei os copos e as canecas como ela gosta, levei o lixo para a rua sem ela ter de me pedir. Mesmo assim, cheguei à cama, pus-lhe a mão na perna, dei-lhe um beijo ao ombro e ela afastou-me com um safanão. Disse que não podia ser, que estava com as regras e as nódoas de sangue são custosas de sair do lençol. Virou-me as costas e adormeceu. Fiquei cego, está a perceber? Não me lembro de nada. Juro. De repente, eu estava de pé, fora da cama, o lençol ensopado, ela calada, com os olhos fechados, a boca aberta e a faca espetada na barriga. Tentei manter a calma, está a ver? Se explicar bem as coisas, toda a gente percebe que foi um ataque de nervos. Um gajo endoidece com estas coisas. Você que é homem sabe o que eu estou a dizer, não sabe? Precisava de telefonar a alguém, de sair para pedir ajuda. Chupei os dedos, um a um. As nódoas de sangue são custosas de sair, lembrei-me, antes de agarrar na camisa para vestir. Foi quando me apercebi que ia sentir a falta dela. Mas pronto, já chega de falar de mim. Então e o amigo, está preso porquê?

*

*

Assuntos de Família

A tia Paula vivia connosco desde janeiro. Andava entusiasmada. E eu também. 

Acordámos cedo, preparámos a lancheira, decidimos o que iríamos jantar depois de voltarmos da praia e escolhemos o filme para ver à noite.

A mãe reclamou, porque não era preciso levar tanta comida. O pai ralhou com a mãe, porque ela reclamava por tudo e por nada. Eu controlei o riso, apesar de ter sido difícil, porque a tia Paula começou a beliscar-me e a imitar os gestos dos dois quando se zangavam. Sempre a achei engraçada.

Estava a ser uma manhã de praia como outra qualquer. O pai lia o jornal nos intervalos entre os mergulhos no mar, a mãe fazia palavras cruzadas, sentada debaixo do chapéu. 

Chegou, finalmente, a hora de comer. A tia Paula tinha marcado as sandes de cada um, porque a mãe não gostava de atum e o pai não gostava de tomate. Nós os dois gostávamos de atum e de tomate. Iguais um ao outro, sempre, em tudo.

O pai devorou a sandes, o que nos deixou muito empolgados, e foi mergulhar. Não tardou a mão no peito, a pele arroxeada, o chapinhar de aflição. A mãe gritou, o que me deixou surpreendido.

Trouxeram-no, já morto, para o areal. Foi um alarido. Dezenas de curiosos, polícia, ambulâncias, o corpo levado dentro de um saco para a medicina legal e a mãe, aos berros, levada numa maca para tratar não sei o quê nem sei onde.

Jantámos e vimos o filme juntos, tal como tínhamos combinado de manhã. Antes de nos deitarmos, a tia Paula agarrou-me nas bochechas e deu-me um beijo na testa. Apertei-a num abraço demorado. Não aguentava mais. 

— E agora, és tu a minha mãe? 

Ela desfez-se delicadamente dos meus braços, pousou as mãos sobre os meus ombros e inclinou-se um pouco, até o rosto dela ficar frente a frente com o meu. 

— Só depois de a despacharmos também, fofinho. Só depois de a despacharmos também. 

*

*

Eterno Divino

Ao sétimo dia, vestiu-se de branco. 

Deu-lhes paus e pedras para se entreterem e escondeu o céu para lá do Sol, com receio de que o partissem. 

Antes de fechar a porta, despediu-se, com a promessa de que se voltariam a ver, no dia em que havia de voltar.

Mentiu.

*

*

Sublimação

Acredito piamente que o nosso destino está escrito. Acredito também que este apenas nos é revelado na altura certa. 

Passava todos os dias em frente daquela porta. Nunca tinha entrado. O cartaz de ardósia, escrito a giz, com a frase «Perceba porque veio até aqui» sacudiu-me as costas num imenso arrepio. Foi estranho. Não senti mais nada, nem cheguei a pensar. O casamento por um fio, o Jorge quase sempre ausente, a idade, a desolação. Que mal teria entrar num bar a meio da tarde?

Empurrei a porta, afastei a cortina negra e pesada, percorri o corredor estreito, escuro e húmido, subi dois lanços de escadas e afastei outra cortina igual à primeira. 

Fui recebida por um jovem em tronco nu, bonito e afável. Bem-vinda ao Templo da Sublimação, Ester. Estranhei que soubesse o meu nome. Foi então que os vi, num canto. O Jorge e uma lambisgoia qualquer, com as línguas dentro da boca um do outro. O jovem em tronco nu sussurrou-me coisas que não percebi e logo vieram o fumo, as chamas e os gritos.

Tive este sonho apenas uma vez, mas soube de imediato que era uma mensagem. 

Passei a segui-lo. Nunca vi a lambisgoia, mas estou certa de que existia. 

Um jerrican de gasolina e um fósforo. Gritou, o Jorge, enquanto o pecado deixava de ter corpo para passar a ser feito de fumo e de chamas. 

Acredito piamente que o nosso destino está escrito. Acredito também que este apenas nos é revelado na altura certa. Abracei-o e esfumei-me com ele.

*

*

Até Já

As molduras perfiladas no chão da sala. Alheios ao cheiro volátil que nos rodeava, continuavam a sorrir nas fotografias. 

Mãe, pai. 

Os meus mortos, donos daquela casa que eu não soube estimar e acabara de perder, depois de ter perdido todo o resto. 

Vagueei pelas divisões desertas. Despedi-me das paredes vazias. Fechei as portadas das janelas. 

Mãe, pai.

Abri a porta e brindei o cão com um chuto no lombo, para garantir que não ficava a choramingar no lado de fora. O bicho percebeu. Consegui ouvi-lo a ganir, distante.

Sentei-me no chão, em frente deles. O peso da culpa fez-me descer as pálpebras.

Mãe, pai. 

O cheiro crescente a gás agoniava-me. 

Raspei a cabeça vermelha na lixa. 

Mesmo de olhos fechados, consegui ver o clarão. 

Mãe, pai, até já.

*

*

Caçador de Lágrimas

Levou-nos amontoadas, sem critério, ainda os primeiros raios da manhã resvalavam na superfície da água. A viagem, no escuro, foi agitada. Apenas nos sentíamos umas às outras e ao gradeamento de metal. 

O tempo passou, muito ou pouco, mas o suficiente para lhe perdemos o rumo.

Acordámos num lugar com uma luz forte. Não tão intensa como a do Sol, mas insidiosa, doentia e constante. 

O monstro era colossal. Agora, levava uma de cada vez. Não tínhamos como fugir, não tínhamos como evitar, só nos restava aguardar.

Chegada a minha vez, fui agarrada e embrulhada num pano grosso e molhado, provavelmente, por ter sido usado com todas as outras antes de mim. Senti a ponta fria e afiada do metal. Tentei fechar-me, quis resistir, mas a lâmina rodava, inclinava-se, insistia. Venceu-me. Senti a carne a estirar e rasgar à medida que me abria. 

Sem hesitação, pressionou-me as entranhas, esmagou-me, espremeu-me, até conseguir roubá-las, uma a uma. Plim, plim, plim, tilintavam ao cair para a taça as minhas lágrimas peroladas em tons de marfim.

Satisfeito, descartou-me, para morrer devagar dentro de um balde, juntamente com as outras. Moribundas, na incapacidade de tornar a fechar as conchas, procurámos conforto no corpo despido mais próximo. 

Empenhado, o monstro continuava. Plim, plim, plim. Nada mais lhe importava. Plim, plim, plim.

Conheceria ele a dor que nos provocava? Seria ele tão evoluído, que se tornara imune ao sofrimento? Ou seria uma forma de vida tão grotesca e rudimentar, que se achava o único detentor da capacidade de chorar?

*

*

Pedestal

O anel dourado ao alto

Ofuscava e escondia

O barro vermelho que lhe sujava os pés

*

*

A Menina Dança?

Vinha a chupar os dedos sujos de chocolate, ligou a pianola e sentou-se no chão, em frente da cavilha de metal. Puxou-a, abrindo o alçapão. Lá em baixo, a fraca figura cruzava os antebraços sobre o rosto, na tentativa de proteger os olhos da súbita luminosidade que preenchia parte da cave.

— A menina dança? — perguntou ele enquanto raspava, com os dentes, o chocolate que se enfiara por debaixo das unhas.

Ela, trémula, feita quase apenas de pele sobre os ossos, por baixo do tutu encardido, descalça e despenteada, levantou-se e agarrou o cano metálico que ligava o chão de cimento ao teto da cave. 

— Dança, menina. Dança!

Ela acompanhava, mal, o ritmo da música da pianola. 

Ele agitava com entusiasmo a mão por dentro das calças.

Satisfeito, atirou uma côdea de pão e uma cenoura para o buraco e fechou o alçapão.

Dias depois, a meio de uma fatia de bolo de noz, foi invadido pela vontade de ver a menina dançar. Ligou a pianola e sentou-se no chão, com uma côdea de pão e uma batata crua e engelhada ao seu lado. 

Abriu o alçapão. 

— A menina dança? 

Nada. Espreitou para o interior da cave, mas a menina não aparecia.

Perguntou mais uma e outra e outra vez, a cada vez mais alto, sempre sem resposta. Apoiou-se sobre os joelhos e inclinou-se, deixando a cabeça pender até ao nível da abertura. Foi quando conseguiu ver, num canto da cave, os pés marmoreados e imóveis da menina.

Resignado, levantou-se. Tirou a chave dourada do bolso e abriu uma pequena gaveta lateral da pianola. Retirou um rolo do seu interior. Soprou, para se livrar da camada de pó que o cobria, e abriu-o. Conferiu do início ao fim, todas as anotações do velho pergaminho. Pensou e repensou, fez contas de cabeça. Para ter uma caixa de música viva, tinha de ter uma bailarina a sério. O projeto parecia tão perfeito, tão isento de erro. Mas o erro repetia-se. E tornava a repetir-se. O que poderia estar a fazer mal? 

Subitamente, um rasgo de clarividência tomou conta de si. Vestiu o sobretudo, calçou as luvas de cabedal, pôs a cartola na cabeça e saiu de casa.

— Vou trazer uma gordinha, mesmo que não saiba dançar. As bailarinas magras duram pouco tempo.

*

*

Ensaio sobre a Escuridão

O silêncio da casa era entrecortado pelos sons dos seus passos e do seu labor. Bela punha a mesa para doze. Cinco pratos de um lado, cinco do outro e um em cada topo. Distribuiu os talheres, os copos, os guardanapos de pano. Abriu um bom tinto e deixou-o a respirar. Trouxe o lombo assado com castanhas, a salada e o arroz. Acendeu a vela órfã, meio queimada e contorcida pelo uso, e colocou o castiçal no centro da mesa. 

A luz ténue e trémula bailava pelas paredes nuas e pelos contornos das cadeiras vazias.

Sentou-se. Aguardava, com os dedos a tamborilar nos joelhos e os olhos ansiosos por companhia. 

Estalidos e sussurros, vindos de toda a parte, começaram a preencher o vazio. 

Bela sorriu. Abriu o guardanapo e esticou-o sobre o colo. 

Aos poucos, as sombras saíam dos cantos e sentavam-se para jantar. 

*

*

Renascimento

Se não estivesse, há duas semanas, frente a frente com a tela em branco, não teria conhecido a magna frustração.

Se não tivesse conhecido a magna frustração, não teria partido o pincel em dois com as mãos.

Se não tivesse partido o pincel, não se teria cortado na lasca de madeira.

Se não se tivesse cortado, não teria gritado nem bebido o seu sangue.

Se não tivesse gritado, a vizinha do lado não teria batido à porta.

Se não tivesse a boca e as mãos ensanguentadas, ela não teria perguntado se precisava de ajuda.

Se ela não tivesse aparecido, ele nunca se lembraria dela.

Se não tivesse olhado para ela enquanto bebia o seu próprio sangue, nunca teria encontrado a natureza morta com que preencheria o branco da tela.

*

*

Aurora

Os silêncios e as persianas corridas dos vizinhos denunciavam que todos dormiam. Ninguém a veria, ninguém iria saber. 

Passou as cuecas de algodão pelos tornozelos e atirou-as para um canto. Fechou os olhos, abriu a porta e saiu. 

Completamente nua, no patamar das escadas do prédio. Os pés descalços, a música que apenas tocava na sua cabeça. O capricho da criança que já não era. 

Interrompeu-a a corrente de ar que lhe acariciou o corpo e o estrondo da porta a fechar-se. Levou as mãos aos bolsos que não envergava, em busca das chaves que não trouxera. 

Abriu os olhos. Pouco faltava para amanhecer.

*

*

O Melhor Coro do Mundo

Encaminhada pelo Frente Sala, um jovem com bigode penteado e luvas brancas imaculadas, foi a primeira a sentar-se. 

Terceira fila, cadeira central. Tinha comprado o bilhete há cinco meses, poucos minutos depois de terem sido postos à venda, para garantir o melhor lugar. De onde ainda se distinguem os traços dos rostos dos artistas, sem ter de se inclinar o pescoço para trás. Contou os dias. Menos um, menos um, menos um, até à noite do espetáculo do Melhor Coro do Mundo.

A sala cheia, as luzes que se apagavam, o pano que se abria. 

Não conseguia controlar o êxtase. Uma lágrima rolou-lhe pelo rosto à primeira nota alta da solista. Os restantes elementos foram entrando, baixinho, primeiro uns, depois outros, em crescendo. Aproximava-se o auge, o momento em que juntos seriam uma só voz. 

Um rombo inusitado misturou-se com o som dos instrumentos da orquestra. Uma nuvem de pó escuro acompanhou a queda de uma corda grossa, que antecedeu o ruir de dois enormes barrotes de madeira sobre o grupo coral. 

Alguns calaram-se instantaneamente, os restantes substituíram o canto por urros de dor ou de horror.

O público, em pânico, gritava e precipitava-se para as saídas. 

Ela mantinha-se sentada.

— Sssshhhhhh! 

Pálida. 

— Sssshhhhhh!

Os olhos fixos na tragédia que se desenrolava em cima do palco.

— Sssshhhhhh!

Não se movia do seu lugar.

O Frente Sala, com o bigode desalinhado e as luvas encardidas, abeirou-se dela e pediu-lhe com voz firme que abandonasse a sala.

— Sssshhhhhh! Ouça… o Melhor Coro do Mundo — disse-lhe baixinho.

— Tem de sair, minha senhora — reforçou, baixando, também ele, o tom de voz.

— Como é possível? O Melhor Coro do Mundo?

— Tem razão, mas...

— Dão reembolso?

— Reembolso?

— Está a ouvi-los? Desafinam todos. 

*

*

As Vicissitudes de Bem Morrer

Sempre ouvi dizer que devia escolher o que vestir com cuidado pois, se morresse naquele dia, seria com essa roupa que passaria a eternidade. 

Escolhi o vestido das florezinhas amarelas e saí sem sapatos. Queria levar na memória a relva molhada pelo orvalho, o cheiro da alfazema, a luz prateada da manhã a despontar por cima do muro do jardim. 

Elegi um ramo da figueira, mais por conveniência do que por outro motivo qualquer. Não estava demasiado alto, permitindo-me que lançasse a corda por cima dele, e o solo naquela zona parecia-me relativamente liso e firme para suportar o pequeno banco de madeira. Fi-lo de costas voltadas para casa, para a vida que ficaria dentro dela, para me libertar de tudo o que ela significava. A eternidade previa-se perfeita. 

Visto agora uma bata branca, que prende atrás com dois atilhos, deixando-me o sulco entre as nádegas à vista de todos pela ausência de cuecas. 

Estou descalça. O chão é frio, o ar cheira a éter e há uma luz do teto que pisca por estar prestes a avariar-se. 

Nem o solo nem o ramo onde prendera a corda tiveram a firmeza que eu supunha. Nem tão pouco a madeira do banco onde bati com a nuca depois da queda aparatosa. 

Teve-a o dedo dentro da luva azul que carregou no botão e que fez desligar a máquina que, nos seis meses seguintes, me insuflara o peito.

*

*

Sensatez

Amo a minha esposa, apesar de tudo. Amá-la-ia mesmo se ficasse careca ou até se perdesse uma perna. É a mulher mais bonita do mundo. Mas ao contrário de mim, que sou um homem muito sensato, falta-lhe perspicácia. É incapaz de medir as intenções dos outros. Expliquei-lhe que não era seguro sair de casa sem mim. Fez birra, chorou, disse que não aceitava. Enfim… Por isso, comprei-lhe uma harpa. Para se distrair, para não passar o tempo todo obcecada, a pensar na porta trancada e nas grades que mandei pôr nas janelas. Arrependi-me em pouco tempo. Da harpa, claro. Noite e dia, dia e noite. Não queria lavar-se, recusava pentear-se, sempre agarrada àquilo. A toda a hora, uma barulheira que não se aguentava. Mas eu sou um homem sensato. Seria incapaz de voltar atrás na minha oferta. Por isso, bati-lhe. Bati-lhe até ela jurar que não tocava naquela porcaria, pelo menos, durante a noite. E ela jurou. Mentiu-me. Nessa madrugada, acordei com uma algazarra diabólica. Não aguentava mais. Descalço, passei pela cozinha e, com faca de trinchar em punho, avancei devagar até à sala de música. Abri a porta. Lá estava ela, despenteada, de olhos fechados, sem se importar com a minha presença, a dedilhar nas cordas do meu arrependimento. Puxei-a pelo cabelo, forcei-a a deitar-se no chão e ergui a mão direita, que empunhava a faca, com a ponta orientada para o seu coração. Em silêncio, olhámo-nos nos olhos. Vimos o nosso reflexo na alma um do outro. Eu sorria, ao mesmo tempo que chorava. Eu sou um homem sensato. Seria incapaz de a matar. Cortei-lhe os dedos.  

*

*

Contemplação

Puxo o escadote de madeira para cima e deito-o sobre as telhas, ao meu lado. 

É daqui de cima que elas se deixam ver melhor. Têm os contornos grotescos refletidos nos meus olhos arregalados. São grandes e gordas. Nuvens escuras, negras, vivas, contorcidas e enroladas umas nas outras. São cada vez mais e cada vez maiores. Falta pouco para cobrirem tudo, para do dia fazerem noite e da noite fazerem cinzas.

Assobio baixinho para subtrair os gritos das vizinhas, os urros dos animais encurralados e as sirenes que se aproximam. Reduzo-me ao deleite do vibrato do vento e dos estalidos das cascas dos pinheiros. Acompanho-os, no compasso dado pela minha mão fechada sobre a caixa de cartão, com a percussão dos fósforos que restam dentro dela. 

Não tarda nada, estarão todos em chamas. Não tarda nada, estarei a arder com eles. 

*

*

Mistério da Fé

Verás que lutarão contra cada amanhecer

Se os ensinares a temer a escuridão

*

*

Ocaso

Quero pedir-lhe aquela coisinha de metal que está ao lado da manteigueira, mas o rapaz não se cala. Parece meio palerma. Bem, é melhor fazer de conta que não quero manteiga e ponho mais uma fatia de fiambre dentro do pão. 

Mas que raio de conversa, esta. Eu só queria comer descansada, para conseguir pôr as ideias em ordem, e ele continua a falar. 

Ai que graça! Uma mulher que se perdeu e achou que lhe tinham mudado a fechadura do prédio, quando afinal estava na rua errada. 

Mau! Então, agora diz para eu não me rir, depois de ter contado uma coisa destas?

Ah, e foi a polícia que lhe levou a mãezinha até casa. Pronto, coitado do moço. Não tinha percebido que a história era sobre a mãe dele. 

O rapaz deve ser meio doido. Um médico que vê véus dentro das cabeças, uma coisa que faz apagar o pensamento, conta-me. Pois que internem as pessoas doentes, respondo-lhe. 

Fiz asneira. Desatou a chorar. Mas diz-me que sim, que o melhor é mesmo internarem a mãezinha. Menos mal. 

Então e quem são estes senhores vestidos de branco e com ar sério que chegaram agora? Mas como é que esta gente toda entrou aqui em casa? 

Ó da guarda! Acudam-me! Mas levam-me para onde, seus cabrões? Larguem-me! 

E este pateta, em vez de me ajudar, só faz é choramingar: mãezinha, tenha calma. Mãezinha, o tanas, meu parvalhão!

*

*

Amor de Substituição

Joaquim, em tronco nu, lavava as mãos na pia de alumínio. Atrás de si, Pedro e Paloma, vasculhavam no interior de mais uma grelha costal aberta. 

— Desapareceu mesmo.

— Já são quantos em falta?

— Três. Só nos falta confirmar na velha que chegou ontem.

Enquanto secava as mãos em toalhetes de papel, Joaquim olhava-os por cima do aro dos óculos. Eram desajeitados. Mesmo à distância, temia que lhe salpicassem a bata que tinha deixado pendurada no cabide, junto à porta. 

Pedro fechou a gaveta frigorífica onde jazia o motociclista abalroado por um autocarro e Paloma abriu a seguinte, onde repousava o cadáver da senhora fulminada por um enfarte em plena missa. Joaquim, atarefado, já tinha a frigideira a aquecer no pequeno fogão elétrico de duas bocas, no canto da bancada da morgue.

— Merda. Esta também tem o peito cortado.

— Porra, mas o corpo chegou esta noite. Como é possível?

Na bancada do centro da morgue, Joaquim acabava de pôr a mesa para três e abria uma garrafa de tinto. Dentro da frigideira, as tiras de carne dançavam, banhadas pela manteiga aromatizada com alho e ervas frescas.

— Também está vazio.

— Mas quem é que roubaria quatro corações de cadáver humano? Para quê?

— Deixem lá isso para depois — disse Joaquim. — O almoço está pronto.

Paloma e Pedro, cabisbaixos, esfregaram as mãos nas partes laterais das suas batas brancas, para retirar o excesso de sangue frio e coagulado, e sentaram-se em frente do respetivo prato. 

Joaquim, solene, serviu, primeiro, batatinhas novas. Salivavam os outros dois, com os talheres em riste e os guardanapos a cobrir o peito, presos na gola da bata. Às batatas, juntavam-se, agora, as reluzentes tiras de carne ainda fumegantes. 

— Que carne é esta, Joaquim? 

— É o que se arranjou.

Paloma e Pedro, desconfiados, pousaram os talheres. Com o olhar fixo no do colega, com as testas franzidas, em silêncio, esperavam explicações. Joaquim, exasperado, perdeu a compostura. Virou-lhes as costas e atirou a frigideira vazia, sem preceito, para cima do pequeno fogão. Dirigiu-se para a saída, agarrou na bata que deixara pendurada no cabide e gritou-lhes, já no corredor, depois de bater com a porta.

— Eu não consigo fazer milagres! Se nos roubaram os corações todos, tive de me desenrascar com rins!

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O Caçador

Chegou sozinho. 

Trazia a roupa puída e manchada de tinta, a barriga proeminente a deformar a camisola, o cabelo desgrenhado, o rosto curtido pelo sol. 

Abeirou-se do balcão. Pediu uma cerveja e foi com um sorriso que a recebeu, já com as moedas na mão. 

Virou-se para a esplanada. Havia cadeiras vagas, mas escusou-se a ocupar um lugar. O sorriso mantido, o antebraço e o tronco apoiados no balcão, uma perna cruzada sobre a outra. 

Observava as pessoas, enquanto bebia com satisfação. As raparigas novas, os senhores bem-postos, as senhoras emproadas, as crianças suadas. 

Escolheu o miúdo ruivo que comia o recheio do pastel de nata com a colher do café da avó. Salivou ao ver os ombros tremerem, os olhos revirarem, o golpe fundo que se abriu na cabeça após o tombo da cadeira. Lambeu os lábios quando a espuma brotou pelos cantos da boca e o pequeno corpo foi sacudido pela convulsão. Por fim, arrotou.

Satisfeito, pousou a garrafa vazia sobre o balcão e saiu. 

Ninguém o viu.

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Soberba

Tirou-os todos das paredes. 

Amontoou-os num quarto sem janelas, com a porta trancada, onde a ausência de luz os remetesse ao silêncio.

Passaria a viver em paz.

Livre do despautério com que celebravam a passagem do tempo.

A salvo do despudor com que lhe exibiam o rosto da solidão.

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Qualidade do que é Efémero 

As primeiras chegam sempre confusas. Amontoadas, caóticas, convulsas.

bop                          bop                 bop                bop        bop          bop                   bop             bop   

     bop                                 bop      bop         bop                    bop                 bop                     bop

Depois, aparecem algumas isoladas. Três ou quatro, não mais. Uniformes em tamanho e em cadência.

Bop

                      Bop

                                             Bop

Anunciam a derradeira.

Bop.

E acaba-se. Belo, mas efémero. Depois disto, tudo é decadência, mau cheiro e podridão.

Largo-lhe o pescoço. Tiro a mão de dentro de água, sacudo-a e passo para a sala do lado.

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Canção de Embalar

Deitada, a pestanejar no escuro, com a testa encostada à tua nuca, os dois despidos e ainda suados, e, enquanto dormias, sem saber porquê, fiz descer a ponta do dedo indicador, às cegas, desde o teu ombro, pelo declive da omoplata, pelos relevos de duas vértebras, pelo contorno da omoplata contrária, e então, chegada ao lençol encardido, desenhei círculos sobre círculos, cada vez maiores, ao imaginar o desaguar e coagular do teu sangue ainda morno com que iria pintar a pele da minha barriga, até que, sem dar por isso, adormeci.

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Da Janela da Palmira

Todas as tardes, às quatro horas e quarenta e cinco minutos, desde o início daquele inverno, Palmira largava a agulha de crochet e a manta que lhe cobria as pernas, levantava-se do sofá, preparava um chá quente de alfazema e atravessava o silêncio da sala, para se abeirar da janela e espreitar pelo intervalo das cortinas.

No segundo esquerdo do prédio em frente, a partir das cinco horas, o homem chegava. Havia sempre confusão e sempre muito variada. Empurrões ou abraços, beijos lambuzados ou bofetadas. Houve um dia que o sujeito ameaçou a mulher com um martelo, para depois se desfazer num pranto, ajoelhado no chão, com ela debruçada sobre as suas costas e a acariciar-lhe as nádegas. 

Naquela tarde de infortúnio, Palmira acordou sobressaltada. Sirenes, buzinas e as cinco badaladas do relógio da igreja preencheram, em simultâneo, o vazio da sala. Pela janela, entrava a luz enfraquecida do sol, que já se escondia. Levantou-se, aflita. Adormecera. Atrasara-se.

Com passos apressados, dirigiu-se à cozinha. Ferveu a água num púcaro e verteu-a para a caneca, onde aguardava uma saqueta de chá. Correu para o seu posto e afastou a cortina com um dedo.

No silêncio da casa em frente, os pés despidos da mulher, suspensos no ar, baloiçavam-se como pêndulos. 

Palmira arregalou os olhos, sem conseguir ver com nitidez. O vapor do chá quente embaciara-lhe os óculos. 

Foi quando os voltou a colocar no rosto, depois de os limpar, que viu o aparato. Na rua, o carro da polícia e a ambulância, o homem a sair do prédio, algemado. Na casa, os agentes a tirarem medidas e fotografias aos pés da vizinha enforcada.

Que final catastrófico, sussurrou, ainda com o coração aos pulos. 

Inspirou os aromas da alfazema e, com as duas mãos, rodeou a cerâmica da caneca, que arrefecia depressa. Apreensiva, vagueou o olhar pelas restantes janelas do prédio. Precisava de um novo entretém para acompanhar o chá das cinco.