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Espólio

Laura Vasques de Sousa

Dissinergia

21.09.23

Eu

 

Querias sanar a tua agonia

A minha urgência não permitia

Fintava o tempo, cortava o pavio

Teu punho fechado continuava vazio

 

Querias mostrar-me o frio rebelde

Que te eriçava o pelo e arrepiava a pele

Meu corpo ardia sempre mais alto

Queimava por dentro, deixava-me farto

 

Querias selar a noite e o dia

Com mágoa, com ganas, sem cortesia

Arrancavas promessas no cume do calor

Poemas orgásmicos, tesouros sem valor

 

Querias estrelas, aleluias, oxalás

Que eu partilhasse as minhas coisas más

O lençol suado, o meu cheiro guardado

Tudo o que é mentira fora desse quarto



***



Tu 

 

Ardor com sabor de sal

Dor com cor de ferro

Ventania que rouba o ar

Fogueira com cheiro negro

 

Frio que queima

Seduz

Teima

 

Clarão que abafa

Sufoca

Mata

 

Ergue-me sem me tocar

Derruba-me, sim!

Quisesse eu evitar

Pudesse eu culpar-te por mim

Palavras Cruzadas *

12.09.23

Palmira tirou a ponta roída da esferográfica da boca e deu uma dentada na torrada sem desviar os olhos do pequeno livro que tinha à sua frente.

– Bruna, clã com sete letras?

– Sou a Sónia. Família.

Levantou o olhar por cima dos óculos de leitura que se equilibravam na ponta do nariz e, durante um par de segundos, fixou-o na rapariga. 

Voltou a dar atenção à escrita.

– Vocês são todas iguais, vestidas da mesma maneira – resmungou, enquanto escrevia no livrinho pousado sobre a mesa da casa de jantar, primorosamente adornada com uma jarra cheia de rosas do quintal sobre um naperon branco-pérola, com a bandeja do lanche à sua direita.

 – Avó, sou sempre eu que estou aqui e nem sei quem é a Bruna.

– A tua mãe vem a que horas? Pedi-lhe para me fazer um favor.

– Deve vir pelo fim da tarde… Mas a avó precisa que eu vá buscar alguma coisa?

Palmira empurrou a parte central dos óculos com o indicador esquerdo, fazendo-os subir até meio do nariz e escusou-se a responder.

– Gruta com cinco letras?

– Gruta tem cinco letras.

– Com sete, com sete.

– Ah! Caverna. 

Palmira escreveu cada letra no seu quadradinho e riscou a descrição da palavra descoberta.

– Sabes a que horas chega a tua mãe, Paula?

– Sou a Sónia, avó. A mãe deve chegar ao fim da tarde. Já lhe perguntei se precisa que lhe vá buscar alguma coisa.

– Vocês são todas iguais, com esses cabelos pintados e esticados. Ensaio clínico com onze letras e que acaba com ‘a’?

– Experiência?

– Deixa ver… sim, é isso mesmo. 

– A avó tem de lanchar agora para tomar os medicamentos. O chá e as torradas daqui a pouco estão frios.

Palmira olhou de soslaio para a rapariga e voltou a concentrar-se, batucando com a ponta mordida da esferográfica no queixo.

– Aquele que perdoa facilmente, com dez letras, começa com ‘i’ e acaba com ‘te’?

– Indulgente.

Palmira preencheu os espaços com as letras, soletrando a palavra pausadamente. Com a testa franzida, olhou para a rapariga por cima dos óculos.

– Sabes da tua mãe, Raquel?

– Eu sou a Sónia, avó. A mãe ainda demora. Tem mesmo de ser ela a fazer-lhe o tal favor?

Palmira torceu a boca e encolheu os ombros com desdém. Largou a esferográfica em cima do caderno, apenas para bebericar um pouco de chá e voltou a segurá-la com ar pensativo.

– Ana, conflito com nove letras?

– Sónia. Confronto. Avó, tem os comprimidos aí ao lado das torradas. Tome-os com o chá, antes que se esqueça.

– Carla, a tua mãe demora-se?

– Sou a Sónia, avó. Diga lá do que precisa!

– Eu já pedi à tua mãe. Ela é que não se pode esquecer. 

– Mas diga lá o que é!

– Preciso que ela me compre outro livro de palavras cruzadas.

– Outro? Então, mas eu trouxe-lhe esse novo ontem! – respondeu a rapariga, com os olhos abertos de espanto.

– Eu sei, mas este que me trouxeste é muito fácil. Não presta. Já viste que eu resolvi esta página sozinha num instante?

 

 

 

* fruto de um desafio semanal do Clube dos Writers