Não se distinguem os contornos dos teus olhos, nem dos teus dentes robustos nem das tuas unhas roídas.
Ferves sem sair do mesmo sítio. São os teus pés que não suportam o chão.
A tua cabeça vira-se de um lado para o outro, desviando as várias pessoas presentes na plataforma da estação, uma a uma, na ânsia de me encontrares no meio delas.
Deste lado estou eu, ansiosa. A mão direita agarrada ao corrimão, sem perceber porque o resto do corpo não avança.
Foram os meus pés, rendidos ao medo, que largaram âncoras no chão.
Do lado de lá da linha do comboio, vês-me.
Levantas as mãos abertas e inclinas a cabeça para trás, em agradecimento ao divino.
Fazes-me sinal que me apresse, com o braço esquerdo à altura peito, batendo três vezes com o indicador direito no mostrador do relógio de pulso.
Deste lado estou eu, congelada.
Abanas a cabeça em negação. Recusas-te a aceitar que o meu arrependimento tenha chegado antes do início da nossa viagem.
Do lado de lá da linha do comboio, eclipsada pela chegada da composição, ficou a recordação da última vez que te vi.
Abri a janela e deixei o ar da rua entrar. Fechei os olhos e inspirei. A minha sala de trabalho está situada na prumada sul do edifício, virada para um enorme jardim, cheio de árvores centenárias que dão abrigo a uma multidão de cigarras. Sorri. Lembrei-me da velhota lá da terra que dizia, a respeito dos que trocavam o campo pela cidade: o verão em que se esquecessem do canto das cigarras seria o verão em que tinham deixado secar as raízes.
Deixei a janela aberta e sentei-me em frente ao computador.
Reclinei-me para trás e voltei a fechar os olhos.
O telefone da secretaria começou a tocar. Ao mesmo tempo, as unhas de gel da moça da contabilidade agrediam com violência o teclado do computador. Maquiavélicas, conseguiam sobrepor-se a tudo o que demais existia. Uma batalha injusta; dez navalhas disfarçadas de unhas contra um telefone e um teclado velhos.
A impressora fez soar três apitos roucos, outros tantos estalidos da engrenagem, puxou uma folha de papel das entranhas e iniciou uma impressão.
As unhas silenciaram-se.
O telefone parou de chorar, não por ter sido atendido, mas vencido pelo cansaço.
O chiar das rodas da cadeira da moça denunciaram uma viagem entre o teclado e a impressora.
As mesmas rodas anunciaram o regresso ao teclado do computador.
Unhas no teclado. Estalidos da impressora. Rodas da cadeira.
O telefone voltou a acordar.
Uma gaveta foi aberta, contrariada. O seu conteúdo foi revolvido, num assalto violento, que desencadeou uma perseguição rancorosa. Qualquer coisa foi agarrada e tirada à força, arrastando com ela uma série de outras coisas que caíram pelo caminho. Era o agrafador, que foi forçado a morder papel duas vezes consecutivas.
O telefone desesperava.
Unhas no teclado. Telefone aos berros. Rodas da cadeira. Cadeira contra a parede.
As unhas fizeram-se ouvir, mais perto, em quatro toques sequenciais na minha mesa, acompanhadas por um “Bom fim-de-semana, miúda!”. Ia responder, a contragosto, mas percebi que não tinha sido esperado retorno da minha parte, porque a mesma voz estava agora no fundo da sala com outro “Bom fim-de-semana, miúda!”, dirigido a outra pessoa qualquer.
Ignorando que se encontrava só, o telefone acabou por desistir mais uma vez.
Libertei-me num bocejo sentido e olhei para o relógio. Distraída, tinha deixado passar a minha hora de saída e ainda tinha dado cinco minutos de graça à casa.
Desliguei o computador e declarei o óbito de mais um dia de trabalho.
Tirei o elástico do cabelo, soltei-o, arejei-o com os dedos e voltei a prendê-lo exatamente da mesma forma como estava preso antes.
Levantei-me e dirigi-me até à janela, para fechá-la antes de abandonar a sala.
Num soluço, parei de respirar. Não conseguia fechar os olhos.
Lá fora, as cigarras continuavam a cantar e eu tinha-me esquecido delas.